É difícil para pessoas racionalistas ao extremo, como nós matemáticos por exemplo, aceitar qualquer conceito que não esteja suficientemente bem definido.
É justamente de inconsistências conceituais que parte a maioria dos questionamentos que fazemos, assim como sua posterior verificação.
Se for dada a um matemático a sequência:
0, 1, 1, 2, 3, 5, 8 e 13
e lhe for perguntado qual deveria ser o próximo número da sequência, ele provavelmente lhe diria supor ser o número 21, mas também lhe diria que não é possível afirmar com certeza, uma vez que não fora informado qual o método usado para gerar tal sequência.
Quando um ateu questiona a existência de divindades, ele normalmente toma como base as definições populares dadas às divindades que questiona, ou então toma como referência o conceito genérico de
divindade.
Algumas divindades são bem definidas, ainda que apresentarem inconsistências lógicas facilmente observáveis.
Hércules por exemplo, era tido como um semi-deus, meio humano e meio deus, no entanto era uma divindade
razoavelmente bem definida.
O deus cristão, normalmente denominado apenas Deus, não teve a mesma sorte. Nenhuma boa e completa definição de Deus nos foi dada. As melhores que já obtive foram sempre fragmentadas, e a maior evidência disso é o fato de nem mesmo os cristãos chegarem a um consenso quanto a ela.
Obviamente, como ex-cristão e ateu, tenho minha definição de Deus, formada com base justamente nos inúmeros fragmentos que fui colhendo durante o tempo em que me dediquei a cultuar tal ser.
Esta é a definição que tenho hoje de Deus:
Personagem principal da mitologia cristã. A ele são atribuídos os poderes de onipresença, onisciência e onipotência, uma existência perpétua para antes e depois da criação do Universo, a própria criação do Universo e obviamente tudo que o compõe, a propriedade sobre as vidas e almas humanas, assim como tudo mais que possa existir e o direito de realizar num futuro incerto o julgamento das almas humanas, com base em suas atitudes e sua servidão a ele enquanto em vida. Também são considerados fidedignos os relatos bíblicos a seu respeito, sendo os quatro evangelhos de Jesus Cristo os principais.
Acredito que a maioria dos cristãos endossariam facilmente tal definição, embora provavelmente acrescentassem alguns detalhes e removessem a parte que refere a ele como um ser mitológico. Até porque todo o restante da definição foi formado enquanto eu ainda era cristão*.
Para um racionalista, não é difícil enxergar inconsistências lógicas em tal definição. Principalmente se considerados os inúmeros relatos bíblicos que são tidos como fidedignos pelos cristãos.
Caso o racionalista que esteja a observar tais inconsistências seja um cristão, ele terá que optar por ignorá-las pura e simplesmente, questioná-las a fundo e terminar no mínimo deixando de ser cristão, ainda que não se torne ateu, ou tentar justificá-las desesperadamente em defesa de seu deus.
Isso aconteceu comigo, ao longo de alguns anos, na verdade ao longo de toda a minha vida, até que finalmente me vi completamente ateu.
Embora sejam muitas as características de tal definição que pareçam inconsistentes, ou ao menos vagas, por se tratar de uma definição, basta que uma única inconsistência seja encontrada para que ela deixe de ser uma definição válida. É assim para qualquer análise lógica, a respeito de qualquer definição. Veja por exemplo o
Paradoxo de Russell.
Aos poucos fui percebendo as inconsistências na definição que eu tinha de Deus, e que aparentemente era compartilhada pela sociedade na qual eu vivia. A cada inconsistência encontrada, eu alterava tal definição de modo a torná-la consistente. Removia características que eu considerava ilógicas. Até que em um dado momento percebi que eu não poderia mais me considerar cristão, uma vez que o deus no qual eu cria não era mais o deus cristão. Após algum tempo percebi que tal deus de fato não existia mais, ou se existia não era mais capaz de interceder por nós. As
evidências me convenciam mais e mais disso a cada dia, até que me vi não mais teísta, mas apenas deísta.
Com uma definição de Deus tão pessoal e cada vez mais reduzida, em um dado momento ela simplesmente se foi por completo. A partir de tal momento eu adotei novamente a definição original e acrescentei o caráter mitológico a ela.
Provar a inexistência de um criador universal é bem diferente de provar a inexistência de uma divindade em particular. E para provar a inexistência de uma divindade em particular, basta encontrarmos e demonstrarmos formalmente uma única inconsistência que seja em sua definição.
Após isso a existência de tal divindade ainda seria possível, mas sua definição não poderia mais ser a mesma. Ela teria de perder um pouco de si para se manter crível. E dificilmente sobreviveria a mais algumas análises.
Infelizmente isso também se aplica ao Deus cristão. E podemos demonstrar que, tal como definido pela própria mitologia cristã, tal divindade não se mostra crível o suficiente para ser considerada mais que um mero mito. Ao lado de Hercules, Zeus, Shiva, Iemanjá, Odin e tantos outros.
* Caso algum cristão queira apresentar uma definição melhor, agradeço de antemão.